sábado, 10 de setembro de 2011

O espírito ancestral

Concorri com esse conto num concurso (não venci)







Algum lugar do litoral da Bahia, Brasil
10 de maio de 1500.

Os anciãos da tribo convocaram a todos para se reunir, na clareira, ao por do Sol. Uma atmosfera diferente pairava sobre a aldeia naquele fim de tarde e havia preocupação e urgência nas palavras dos anciãos.
- Como no passado já aconteceu, invasores vêm através do mar, para usurpar nosso lar e dominar nosso povo. – disse um dos anciãos. A tribo, despojada de qualquer temor da guerra, se mantinha firme diante das palavras dos mestres.
- Mas ao contrário de séculos atrás – disse outro dos anciãos – quando os homens de cabelo dourado tentaram invadir nossas terras... Nós não conseguiremos impedir os novos viajantes de invadir e dominar nosso lar. E a sombra da morte paira sobre alguns de nós. – concluiu com os olhos tristes. E a essas palavras a tribo fez silêncio. Era impensável para a tribo que nem mesmo os poderosos guerreiros que havia entre eles fossem capazes de rechaçar as forças inimigas.
- Dessa vez um terror muito maior estenderá seu braço sobre nós. Os inimigos vêm do outro lado do mar, mas não só para tomar nossas terras... Para nos escravizar também. – disse o terceiro dos anciãos.
- Nunca! – gritou um dos índios em meio à multidão – prefiro a morte a ser escravo de um desses invasores do final do mundo.
- A morte e outros terrores aguardam a muitos de nós – disse o primeiro ancião.
As chamas da grande fogueira, acesa no centro do círculo formado por toda a tribo, se contorceram numa figura sinistra; um esqueleto envolto por uma capa de chamas esvoaçando ao vento. O grito gutural do espectro ígneo irrompeu em meio às chamas, o deslocamento do ar apagou a fogueira e, subitamente a tribo estava imersa, na escuridão e no silêncio.  Como nunca antes, cada espírito ali foi tomado pelo medo, o perigo nunca fora sinônimo de medo, mas agora a sensação gélida tomara a espinha de cada presente ali e o azedume enroscou em suas gargantas embargando-lhes a fala. Em meio ao estarrecimento o terceiro ancião, até agora em silêncio, finalmente se pronunciou. A voz fraca do mais velho dos mestres da aldeia era a única a ser ouvida, vinda da penumbra, o único ponto de referência nas sombras.
- Muitos de vocês devem se perguntar – ele fez uma pausa que pareceu adensar a escuridão nos corações de todos – como é que no passado derrotamos tão poderosos inimigos vindos também de além-mar. A resposta não é tão difícil. Está na sabedoria antiga, no conhecimento ancestral de nosso povo. No passado quando o povo de cabelos dourados desembarcou em nossas terras nós evocamos uma antiga magia que deu a nossos guerreiros a força necessária para enfrentar a ameaça e vejo que novamente teremos que fazê-lo – completou o ancião.
Discretamente um jovem índio acendeu novamente a fogueira – iluminando os rostos dos três anciãos – o primeiro deles voltou a falar.
- A força de que falamos é algo extremamente poderoso e devo avisá-los de que, ainda que sejamos nós os únicos que saibamos evocar esse poder, nem mesmo nós podemos controlá-lo completamente. É uma força terrível e além da imaginação; por esse motivo nós lançamos mão dessa arte apenas em casos extremos. Infelizmente o que o destino nos reserva é uma grande escuridão pela qual deveremos passar da melhor forma possível.
- Como eu havia dito – pronunciou-se o segundo ancião – o véu da morte paira sobre nosso povo. E ainda que lutemos, como dizem as visões que buscamos, não conseguiremos, desta vez, evitar a invasão de parte de nossa terra, mas agora o que está em jogo é nossa liberdade. Os homens brancos de além-mar vêm até nossa terra em busca de riquezas que não existem lá e também... Em busca de escravos para servi-los. Nós filhos da terra alimentados pelo espírito do fogo e do vento jamais poderíamos viver cativos. Dessa forma nosso espírito se apagaria e nosso destino seria pior do que a própria morte. Agora lutaremos pela liberdade de nossos espíritos, ainda que no final a morte nos aguarde.
- E o que faremos? – manifestou-se o jovem índio que reacendera a grande fogueira.
- Os dez melhores guerreiros de nosso povo foram escolhidos para participar do ritual e receber o poder concedido pela magia ancestral. Estes se tornarão criaturas diferentes e dotadas de grande poder. Mas seus espíritos se tornarão incontroláveis e sanguinários, seus olhos transmitirão terror ao inimigo e talvez suas mentes nunca mais voltem a sua forma original.
- Esse é o preço a se pagar pela proteção de todos – disse um índio altivo e forte já sabendo ser um dos escolhidos.
Um a um os dez guerreiros caminharam até o centro do círculo de fogo. Os três anciãos começaram a andar em torno da fogueira pronunciando palavras num idioma ancestral e as chamas se adensavam, esticavam, retraiam e mudavam de cor conforme o tom de voz ou a velocidade da fala dos mestres. O vento chiava sinistro, por entre as copas das árvores e, até o chão revolvendo a terra e as folhas secas em incontáveis redemoinhos. Um frio diferente tomou conta dos corações de todos os índios e, embora aquele ritual fosse sua única chance, de manter a liberdade da qual suas essências eram feitas, eles temiam libertar uma força maligna e incontrolável. O próprio céu pareceu mudar de cor, imitar os tons da fogueira. A fumaça mística irradiava partículas sinistras que tornavam o ar pesado e difícil de respirar. Os pulmões dos guerreiros escolhidos doíam e seus olhos ardiam como brasa tirada do âmago da fogueira. O terror nos olhos da tribo aumentava conforme o ritual despertava a terrível força das entranhas da terra. Embora os índios não soubessem a alguns quilômetros dali, os invasores de além-mar observavam o céu sobre a aldeia e a visão alimentava os mais terríveis pesadelos sobre aquela terra desconhecida, durante o sono visões de aterrorizantes bestas e demônios atormentaram seu sono. Na clareira as forças desconhecidas estavam a ponto de irromper através do tecido da realidade e a cada segundo aumentava o assombro de todos ali presentes. Vindas de todas as direções, as vozes surgiram; algumas graves, outras chiadas, algumas agudas, outras rasgadas, mas todas aterradoras, e os redemoinhos de vento aumentaram em tamanho e velocidade até que chegaram perto e envolveram os guerreiros e, nesse momento, suas essências foram alteradas. A alma de cada guerreiro passaria a dividir espaço com um espírito ancestral. Embora todos ouvissem as vozes os dez guerreiros, agora envoltos pelos redemoinhos, ouviam as vozes maléficas num volume ensurdecedor. Eles tentavam tapar os ouvidos, mas era impossível bloquear o som já que as vozes gritavam agora de dentro para fora de suas mentes.  O calor agora era tão forte que cada fibra do corpo parecia ser feita de fogo. Depois de quase um minuto de dor e desespero os guerreiros sentiram a energia se suavizar e o poder correr por suas veias. Suas pelas agora estavam mais escuras e uma espécie de cauda crescera trazendo de volta o lado animal de cada um deles. Agora os guerreiros podiam se mover, com a velocidade do vento, dentro de redemoinhos de vento. Seus olhares não eram mais, apenas, de destemidos guerreiros. Por trás das cores de seus olhos havia algo sombrio e hediondo – Um brilho faiscante de maldade – sede de sangue.
Por três dias houve paz na aldeia e os curumins puderam brincar no rio e pescar com suas lanças de madeira, enquanto os guerreiros testavam seus novos poderes e tentavam, sem sucesso, controlar a força indomável dos espíritos ancestrais. Por vezes eles sentiam que suas almas estavam perdendo totalmente o controle dos corpos para as entidades antigas. Frequentente se viam arrastados pelos redemoinhos de ventos que eles mesmos criavam.
Na tarde do quarto dia após a evocação das entidades os índios puderam ver a chegada dos invasores. Eram muitos e se aproximavam com velocidade. Haviam passado os quatro dias anteriores abrindo caminho pela mata, derrubando as árvores e matando os animais que entravam em seu caminho. A violência, que os invasores já traziam do outro lado do mar, aumentou após as visões que tiveram do céu sobre a aldeia na noite da evocação e os pesadelos que atormentaram suas noites depois disso. No coração da aldeia o solo tremeu em reflexo dos passos das duas centenas de homens que marchavam por entre as árvores. Quando romperam a ultima fileira de árvores os “visitantes” se depararam com a clareira deserta. Tudo o que havia era uma fogueira acesa no centro da clareia. Nem um som se fazia ouvir e o silêncio estrondoso, quase sobrenatural, estarreceu os invasores e os fez brandir suas espadas mesmo, aparentemente, sem inimigo para enfrentar. Eles sentiram os pelos do braço se eriçar e por um minuto pensaram em debandar, mas não tiveram tempo para isso. De todas as direções surgiram redemoinhos de vento que desnortearam os homens brancos e os fizeram desfazer a formação. Um deles sentiu algo agarrar seu pé – o grito ecoou por toda a floresta – o homem foi atirado contra uma rocha e caiu desfalecido sobre a terra fofa. Outro dos homens teve sua armadura estraçalhada por uma rajada de vento e correu desesperado para dentro da floresta, sozinho e desprotegido, a mercê do ataque de qualquer animal naquela terra desconhecida. Um dos viajantes foi agarrado pelo pescoço e o guerreiro indígena, dominado pelo espírito da entidade primitiva olhou para os olhos do homem branco que enlouqueceu com a visão do terror dentro dos olhos da criatura. A gargalhada abissal da criatura penetrou nos recônditos mais profundos da mente do navegador e seu coração disparou em desespero e não resistiu... Seu rosto empalideceu e a vida deixou seu corpo inerte. Muitos dos usurpadores vindos do mar foram eliminados, mas três dos guerreiros-espíritos também foram derrubados e, a despeito do poder sobrenatural da linha de defesa da tribo, a vantagem numérica e de treinamento militar dos invasores era notória. Muitos dos navegantes experimentaram o terror do confronto com os “demônios da floresta” (como eles viriam a chamá-los mais tarde), mas enorme desvantagem os índios tiveram que abrir mão da aldeia e partir para longe. Os guerreiros continuaram lutando, porque sabiam que sua missão era apenas ganhar tempo para que a tribo pudesse escapar da investida dos navegadores. Dois dos guerreiros-espíritos sobreviveram, mas tiveram que tomar um rumo diferente dos demais da tribo. O poder das entidades evocadas era incontrolável, e se voltassem ao convívio da tribo poderiam ferir seus companheiros e causar a desordem e morte na tribo.
Foi impossível evitar a invasão... Nos meses que se seguiram mais naus chegaram à terra dos índios e nos anos seguintes mais e mais homens brancos chegaram. Aqueles que tinham real direito sobre aquela terra não puderam evitar que seus recursos fossem extraídos à exaustão, mas ao menos seus braços e pernas permaneceram livres das correntes e amarras, embora daquele momento em diante nunca mais fossem realmente livres. Alguns homens tentaram convencer-lhes de que deviam procurar “liberdade” olhando para o céu e tentaram vestir-lhes roupas, pesadas e incômodas, mas nunca mais desde aquele dia tentaram usar de força para obrigá-los a aceitar sua vontade. E para sempre entre os portugueses foi contada a história de demônios que se moviam dentro de redemoinhos de vento, cujos olhos transmitiam terror ao inimigo, e que protegiam os índios quando alguém tentava ameaçá-los. Mas eles atravessaram novamente o mar e além de sua própria terra encontraram outro povo diferente, deles e também dos índios, e os levaram até aquela terra para servir a suas vontades.

Fazenda Monte Santo
Minas Gerais, Brasil
31 de dezembro de 1799.

Mais um dia de trabalho exaustivo se passara. Não importava se adulto ou criança – todos eram forçados e explorados até o limite da força humana. Aqueles que tinham um pouco mais de sorte eram selecionados para o trabalho dentro da sede da fazenda (“Casa grande”), diretamente comandados pelo “Senhor de Monte Santo”, como os escravos chamavam, o proprietário da fazenda – Os chamados “negros de dentro” eram os únicos agraciados com comida minimamente decente e aposentos menos severos e consideravelmente mais limpos.
A noite se adensava na fazenda Monte Santo e na senzala os jovens escravos traçavam os últimos detalhes de seu estratagema para conseguir, finalmente, a liberdade. Na casa grande, Tião, o jovem “negro de dentro” esperou pacientemente até que o senhor dormisse. Seu coração batia audível, para ele. O som do músculo cardíaco bombeando sangue através de seu corpo tenso era tão alto que o pequeno escravo chegava a temer que alguém mais além dele próprio o ouvisse. Ele tinha que caminhar no escuro, usando como guia apenas sua pericia e seu conhecimento da casa, já que se acendesse uma vela o cheiro forte da parafina poderia acordar o senhor e destruir o plano traçado ao longo de meses por ele e pelos seus companheiros “de fora”. Medo, sonho, adrenalina, preocupação. As emoções fluíam pelas veias do garoto em forma de sangue quente. Era um ato de indiscutível coragem: além de arriscar todo o conforto que tinha por sua função de acompanhante do senhorzinho, o jovem escravo arriscaria sua própria vida. Por vezes sentiu que seria descoberto e se isso acontecesse teria uma morte horrível, mas ainda assim seguiu em frente pela escuridão até alcançar o aposento do senhor. Ainda no breu o garoto fez força para se lembrar das conversas do senhor de escravos com o feitor Jaime sobre o lugar onde era guardada a chave da senzala.  Uma vez ele ouvira que as chaves estariam numa das gavetas do criado mudo, mas para desespero do pequeno escravo, havia um móvel a cada lado da cama.
Na escuridão do quarto do senhor o garoto só tinha uma chance de encontrar a chave, qualquer ruído àquela altura despertaria o senhor e levaria o garoto à morte. Em meio à penumbra o pequeno Tião escolheu um dos criados-mudos e puxou a gaveta que, para sua sorte, estava destrancada, o senhor resfolegou e se mexeu, fazendo congelar o sangue do jovem. Em mais um espetacular golpe de sorte o garoto encontrou a chave de primeira e assim que cruzou a porta do quarto Tião saiu em disparada rumo à senzala, sob o céu da noite. Logo que viram o pequeno disparar em direção a eles os escravos da senzala se levantaram. A chave girou e o estalido da fechadura ecoou como o som da liberdade. Os escravos correram. Um deles ergueu o pequeno herói sobre os ombros e junto aos outros correu rumo ao limite norte da fazenda Monte Santo onde Kauan, um índio, amigo de Tião esperava com onze cavalos para a fuga dos escravos rumo ao Quilombo “dos jaguares”. Eles montaram os animais e seguiram estrada adentro. A estrada e a fazenda Monte Santo se perdiam na escuridão da noite. O jovem Tião e os outros meninos escravos desapareciam estrada adentro.
Após quase quinze minutos de cavalgada o grupo de jovens escravos já havia cruzado o limite norte da fazenda Monte Santo e a liberdade parecia ainda mais próxima. Mas o desespero toma conta de nossas almas nos momentos mais inesperados. Os jovens sentiram o sopro frio do medo quando eles avistaram alguns metros à frente, uma comitiva com cerca de vinte homens. Entre os homens que vinham de encontro aos fugitivos estava o temido feitor Jaime, famoso por implacáveis formas de tortura contra aqueles considerados transgressores. O feitor foi o primeiro a se virar e notar a presença do grupo de escravos, seu olhar hediondo foi de encontro ao escravo mais velho do grupo, Moisés, aquele que arquitetara o plano de fuga desde o início. Não havia mais como escapar. A comitiva agora cavalgava de encontro a eles. Agora o melhor que poderiam esperar era a morte. Tião agradeceu por seu amigo Kauan não tê-los acompanhado, sua vida seria poupada e estaria livre das terríveis torturas que, todos ali, certamente sofreriam.
Em meia hora todos os negros estavam na presença do senhor. Agora seria ele a decidir o futuro daqueles doze homens.
- Ora, ora, ora... Quem eu vejo aqui! Fugitivos! Por quanto tempo planejaram isso? Semanas... Meses? Me admira você Sebastião! De todos você era o mais privilegiado. Tinha boa cama, boa comida... E trocaria isso por um esconderijo imundo no meio do mato?
– Liberdade sinhô. Luxo num é liberdade. Uma corrente de ouro continua sendo uma corrente. – Respondeu o jovem escravo.
- Então suas línguas são tão hábeis para falar quanto suas pernas para fugir. Jaime... Corte-lhes as pernas esquerdas. E Tião... Acho que as piranhas do lago vão gostar de um pouco de comida.
O medo tomou conta dos corações dos jovens negros. Mas não era o medo pela dor que sentiriam. Não era o medo pelas torturas que lhes seriam aplicadas. Era o medo por serem limitados. Perder uma perna tornaria qualquer tentativa de fuga praticamente impossível. Vendo-se sem saída o líder, Moisés, investiu contra o feitor. Hábil na arte da capoeira ele fez um movimento com a perna e derrubou o feitor. O mesmo aconteceu com mais três dos capangas do senhor de Monte Santo, mas um quarto homem da comitiva apontou sua arma e como um tiro preciso no ombro de Moisés, derrubou-o no chão. O feitor que se levantara da queda e se recuperara do torpor do golpe tirou da cinta um facão, enquanto três outros homens seguravam Moisés pelos ombros. Os olhos do feitor faiscaram de maldade ele tocou a lâmina fria na perna do líder dos jovens escravos o grito de agonia de Moisés ecoou pela noite em Monte Santo e aqueles que ouviram mesmo a léguas de distância despertaram de seus sonos tomados pelo mesmo terror que acometeu Moisés naquele momento. Um a um os escravos sentiram a dor e o toque da lâmina fria, o torpor sufocante da perda de sangue e a sensação cálida e terrível do plasma embebendo seus corpos. Depois da implacável tortura os jovens foram outra vez trancados na mesma senzala na qual passaram a maior parte de suas vidas. Para torturá-los o feitor Jaime pendurou uma cópia da chave da senzala no ponto mais alto do teto de madeira e palha. Os escravos a observavam, mas sua deficiência os impedia, irrevogavelmente, de alcançá-la e ainda que pudessem fazê-lo seria impossível fugir ou correr sem uma das pernas. Por meses os jovens padeceram em seu cárcere. O feitor cuidava para que a dor e sofrimento dos jovens jamais cessassem. Mas, de longe, alguém os observava e pensava numa forma de ajudá-los a sair de seu pesadelo diário. Kauan, o índio que conseguira os cavalos para a fuga e tomara outro rumo pouco antes de os negros serem capturados pela comitiva do senhor de Monte Santo. Kauan buscara nas tradições de seu povo um conhecimento ancestral. A magia quase esquecida, conservada ainda, na mente dos anciãos de seu povo foi transmitida a Kauan. Numa noite em abril de mil e oitocentos o jovem se esgueirou pelas estradas de Monte Santo e alcançou a senzala. Com algumas batidas na porta ele acordou os amigos. Ele explicou o plano e todos concordaram em participar do ritual. Kauan passou por entre as grades uma garrafa de óleo e uma pederneira por entre as grades. Os escravos acenderam o círculo de fogo e o índio preparou o encantamento. Kauan começou a pronunciar palavras no idioma ancestral de seu povo. As chamas multicoloridas cresceram e lufadas de vento chiaram nas copas das árvores. Algo sinistro tomou conta do ar e Kauan se sobressaltou ao sentir a obscura energia mística desencadeada naquele encantamento. Redemoinhos de vento surgiram dentro da senzala e envolveram os escravos. Por pouco mais que um instante eles ouviram terríveis vozes e gargalhadas maléficas dentro de suas mentes. Depois de poucos segundos de tormento um silêncio absoluto preencheu as mentes daqueles onze jovens e o poder correu por suas veias. Dominados pela força dos espíritos ancestrais apenas uma imagem tomou conta de suas mentes – o sorriso hediondo do feitor Jaime – com a velocidade do vento eles saíram, derrubando a pesada porta de madeira, e foram em busca daqueles que os torturara por todos aqueles meses. Embora soubesse que o feitor merecia ser punido por seus crimes Kauan, por um segundo, preocupou ao ver o poder da energia que libertara.
Os onze jovens dominados pela força dos espíritos antigos, transformado em outras criaturas, os jovens saíram dentro de seus redemoinhos de vento destruindo tudo o que estivesse em seus caminhos. Carroças, animais, lavouras, paióis... Nada foi poupado da destruição. O feitor Jaime e mais dez de seus homens estavam num banquete e soltavam altas gargalhadas entre os goles de vinho tinto. De súbito um frio correu pela espinha de Jaime e ele acidentalmente derrubou sua taça derramando o vinha tinto sobre o jornal que forrava a mesa. Muitos de seus homens também sentiram algo gélido correr por seus estômagos. Alguns deles tiraram seus gorros vermelhos e coçaram as cabeças e outros deram profundas tragadas em seus cachimbos para aliviar a tensão.
- Mas porque essas caras de frangos assustados? Por acaso o banquete não lhes parece satisfatório? – zombou Jaime para disfarçar o súbito temor que o assaltara.
Jaime apanhou sua taça e assim que a ergueu o vidro estourou ferindo seus lábios. Com o grito ele se levantou e os outros homens também se afastaram de suas cadeiras. Uma a uma as taças estouraram derramando o líquido vermelho sobre os capangas de Jaime. Um redemoinho destruiu a porta da choupana. Os homens pegaram suas armas e disparam inutilmente contra o redemoinho. Um dos tiros atingiu a garrafa de vinho cuja base caiu no chão, de pé, como uma estalagmite afiada. Mais e mais redemoinhos invadiram o bar da estalagem e os homens atiravam para todos os lados e, com isso, tudo o que conseguiram foi acertar uns aos outros. Quatro dos empregados da fazenda foram atingidos por seus próprios companheiros e o sangue rubro se fundiu ao vinho quando os atingidos caíram ao chão. Outro dos homens tropeçou ao tentar correr e caiu sobre o caco afiado da garrafa desfalecendo em seguida. Depois de quase um minuto de terror e confusão as onze criaturas desaceleraram seus redemoinhos e Jaime pode reconhecer os rostos dos pequenos escravos, embora, agora com rostos transformados pela aura obscura dos espíritos ancestrais.
- Mas que abominação é essa? – exclamou o feitor ao ver Moisés caminhando sobre uma perna só.
- Viemo apresentar uma amiga pra ocê. – respondeu Moisés apanhado um facão que estava sobre a mesa.
O feitor tentou correr para a porta, mas dois redemoinhos o atiraram novamente para dentro. Moisés tomado pelo próprio ódio e pela força incontrolável do espírito, que àquela altura já havia tomado seu corpo e sua consciência quase completamente, ergueu Jaime pelo pescoço e o pressionou contra a parede. Ele tentou pedir por socorro, mas a pressão esmagadora em seu pescoço conteve sua voz. Quase inconsciente o feitor foi desperto pela dor da lâmina rasgando sua carne. O grito de desespero de Jaime nunca chegou a ser ouvido – todos os redemoinhos envolveram o corpo de Jaime – o vento abafou o som de sua voz. A força abissal do vento estraçalhava a carne de Jaime enquanto ele via os últimos traços do mundo na forma de um borrão que se movia freneticamente.  Os restos do corpo destruído de Jaime foram deixados ali, no chão, ao lado dos corpos inertes de seus capangas. A vingança dos jovens escravos veio veloz e destruidora como um forte vento, mas o preço foi alto, nunca mais aqueles espíritos primitivos deixariam seus corpos. Eles apanharam para si os gorros dos feitores de Monte Santo e para sempre vagaram usando aqueles gorros vermelhos em memória de sua vingança. Aquelas criaturas vagaram desde então por fazendas de escravos causando caos e desordem até que a escravidão, a verdadeira abominação, acabasse para sempre. 





- André Walker - 



*Parabéns aos vencedores ^^

Um comentário:

  1. Comecei a ler o conto e não parei até lê-lo por inteiro. Sua maneira de escrever, de contar é envolvente.
    Os mesmos espíritos que permitiam a "liberdade" os aprisionava. Muito interessante. E quando li sobre a perna cortada...quase senti a dor em mim. E se me permitir gostaria de tatuar essa frase em meu pensamento: "Uma corrente de ouro continua sendo uma corrente."
    Parabéns!!!
    bjs

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